sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Melancolia ( II )

Melancolia ( II )


Melancolia. A melancolia se espalha como uma bruma,
E na sua face fátua ela me espelha como uma imagem,
Vendo eu mesmo nela refletido penso ser uma miragem,
Desenho feito da brancura alva das molhadas espumas.

Mas não. Aquela imagem é a verdadeira que me pinta,
Com as cores cinzentas da realidade, e pois, nenhuma,
Nenhuma aquarela será capaz, com pincel que se apruma,
Mudar a cor de quem morreu, quem tem alma extinta.

Melancolia, elixir que bebo e me embriago, e, em suma,
Que traduz-me a vida em poucas linhas de expressão.
Traduz meu paradeiro que para o nada sempre ruma.

Melancolia, que me dá as cores, desde a concepção.
Infeliz no ventre materno. Eu, sem salvação alguma,
Andando  sempre à beira do precipício da destruição.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Morreu, Recomeçou

Morreu, Recomeçou
Pela ocasião da morte de meu tio avô Adahil Erthal

Morreu. Partiu, deixou a doce prisão carnal,
Que nos aprisiona desde a concepção no ventre,
Materno, no tempo depois do antes, no entre,
Tempo antes do depois; até o tempo final.

Morreu, deixou pessoas com tristeza na fronte,
Deixou memórias, retratos, coisas sem preço,
Mas deixar coisas e pessoas, também é recomeço,
Então se morreu, recomeçou, Deus saberá onde.

Morrer não será portanto, nada além do que,
Um recomeço inegável, irrecusável e absoluto,
Para quem morreu e para quem guardou o luto.

Morreu meu tio, e guardo doces lembranças de você,
E recebo a notícia com uma estranha calma,
Porque sei que Deus haverá de guardar-lhe a alma.


Poema do Cadáver

Poema do Cadáver

                                      ( I )

Domingo à tarde. As ruas estão vazias de gentes,
Só o vento quente do verão e um café estão abertos,
Há quem queira café quente em meio a este deserto,
Há quem sofra dessa solidão externa, internamente.

Olho as esquinas e com dificuldade enxergo essas suas,
Confluências entre passagens pré definidas, antes,
Talvez melhor que fosse assim o meu destino errante,
Preconcebido como o desenho quadrilátero das ruas.

                                      ( II )

Minha vida não possui esta lógica, talvez nenhuma,
Nem sei se se chama vida tamanha desinteligência,
Sinto assim um sentimento agudo de tamanha urgência,
Fugaz como o sorriso branco das águas na espuma.

Eu que tenho em mim tantos e tão estranhos desencontros,
Como um desenho de uma doentia desarquitetura,
Que somente possuindo a lógica que possuo – a da loucura,
É que ponho enfim tudo encaixado em seus devidos pontos.

Sou, assim, um saco enorme de esquinas e encruzilhadas,
Levo em mim a falta de saída de multidões de becos,
Trago, por isso, de angústia e agonia os lábios secos,
E os olhos, em suas íris, trago elas úmidas, molhadas.

Falta encaixe, falta lógica, faltam retas nesta estrutura,
E tanto e tamanha a constatação fatídica desta dita falta,
Diante da penalidade que é ter tantas e tamanhas tralhas,

Que um dia muito distante, já com a noite alta,
Romperei, por não caber, as fibrosas cimentadas malhas,
Com que hão de fazer a minha própria sepultura!







segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Eu Sou o Filho do Sonho Morto

Eu Sou o Filho do Sonho Morto

Minhas pálpebras são velas que não mais se içam,
E minhas íris castanhas são encalhados navios,
Eis que meus olhos são dois oceanos vazios,
Pois que os mecanismos das lágrimas já enguiçam.

Minha alma é um enorme marítimo rodamoinho,
Em que morrem todos os meus sonhos afogados,
Meus sonetos, todos eles, são rasgados,
Em meus diálogos eu estou sempre sozinho.

Eu sou o náufrago que não chegou ao porto,
Afogado por sonhar por demais,
É meu aquele feio e decomposto corpo,

Encontrado no mais longínquo cais.
Eu sou o filho do sonho morto,
Do sonho que não se pode sonhar mais.

Os Restos dos Seus Antigamentes

Os Restos dos Seus Antigamentes

Passo por essas ruas com casas velhas, paredes encardidas,
Que o tempo confiscou o telhado, levou em penhora o forro,
Nas calçadas velhos agasalhados, casacos, cachecóis, gorros,
E um olhar estrábico característico da lucidez perdida.

Padarias e mercados com azulejos quebrados e sem rejunte,
Máquinas de moer carne enferrujadas, balanças sem ponteiro,
Senhoras que passam os seus dias todos, estes dias inteiros,
A conversar consigo mesmas, sem que ninguém a elas pergunte.

Há, sim, uma estranha beleza em quadro tão triste, bisonho,
Há algo de docemente melancólico nessa definição de abandono,
Como um néctar que deixa eufórico e também tristonho.

Nessas arquiteturas decadentes, nessas tristes velhas gentes,
Vivendo como que se mergulhados em um inebriante sono,
Vivendo dos restos dos seus próprios antigamentes.

A Vingança da Noite

A Vingança da Noite

A noite já está cansada de caminhar na curva do céu,
Como um andarilho que usa de apoio um bastão,
A escuridão começa a escorrer-lhe pelas mãos,
A madrugada inicia a levantar o seu próprio véu.

Os pássaros numa rapidez, numa urgência que urgia,
Vinham como sacerdotes em místicas práticas,
Evocar, com suas vozes, conjurações galácticas,
Praticando uma estranha e belíssima liturgia.

Os pássaros exorcizam do céu as noturnas trevas,
E conjuram os raios solares da nascente manhã.
A noite parte pesada como um enorme leviatã,
Mas em sua rede, em vingança, todas as estrelas leva!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Flor de Pus

Flor de Pus

Ah, flor de pus, odorífera flor macilenta,
Quantas horas passei por seguidas madrugadas,
Sugando a seiva de suas pétalas enrugadas,
A seiva que pingava, esbranquiçada, lenta.

Ah, flor de pus, impassível flor defunta,
Quanto mais eu entre teus braços estreitos,
Mais se aprofundava o teu pus em meu peito,
A ponto de sermos uma só morte, junta.

E eu, formidável flor, das flores a mais extrema,
Eu que admirava as tuas gotas como quem,
Admirava pedras preciosas, preciosíssimas gemas.

Agora, flor, que sei o veneno que destilas tanto,
Espero que nem eu, nem mais outro alguém,
Busque em teu caule seco o engodo do acalanto.

Algo Que se Quebrou

Algo Que se Quebrou

Ausências, alheamentos, solidez aos cacos,
Se estou dentro, quase morro de inércia,
Se saio, temo que uma força disperse a,
Minha vontade, feita de desejos fracos.

Quisera comer iguarias no lugar de areia,
E que a água não se fizesse em minha boca, pó,
Olho para os lados – ninguém – estou só.
Levado pelas correntes duma maré cheia.

O tempo e a doença fizeram-me triste traste,
Um moribundo que procura sua própria cova,
Tentando encontrar pelo caminho algum desastre.

Vou caminhando ininterruptamente, assim,
A cada vez tenho mais concreta a prova,
De que definitivamente algo se quebrou dentro de mim.

Desertores do Mar

Desertores do Mar

Hoje eu estava diante do mar e ele anoiteceu fétido e sujo,
A sua maresia, qual serpente, enrodilhava-se nas narinas,
Trazendo à boca um cheiro nauseabundo de mil latrinas,
As marés trazendo a tona uma gosma untuosa de caramujos.

Os baiacus inchados como  vítimas de violento enfarto,
Arrancados do peito do mar como corações do peito humano,
Demonstravam cruamente a extensão do enorme dano,
Como se fosse a morte o lado inverso daquele parto.

Nas franjas das marés altas ficavam os desenhos ondulantes,
Dos dedos longos das águas que pareciam querer fugir,
Do próprio mar que as abrigara tantos séculos antes.

E eu, como testemunha dos suas ondas como estertores,
Do mar querendo segurar suas próprias entranhas, a ruir,
Animais mortos, marés, uma legião de tristes desertores.


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Perfeição de Musa

Perfeição de Musa
Para Kenia
Uma dúzia de rosas é pouco para cobrir-te inteira,
Tu que és do mármore a mais pura branquidão,
Assim é que a pétala rosácea em tua branca mão,
Parece a mais linda maçã de todas as macieiras.

Teu corpo imerso nas águas que te recobrem, mornas,
Como um lago que jorrasse da fonte do próprio desejo,
Este lago é a minha própria boca cobrindo-te de beijos,
Enquanto no próprio objeto desejado tu te tornas.

Pétalas espalhadas sobre das águas o espelho,
A bailar ao sabor dos teus doces movimentos,
São como pequenos lábios, ansiosos vermelhos.

Que perfeição de musa que tu és, ó meiga e linda,
A ver-te perco me em dezenas de pensamentos,
Mas num só me fixo: hás de ser toda minha, ainda.

Tu, Estátua

Tu, Estátua

A tua boca, a tua boca pétrea, me doía, estátua,
As tuas mãos sem vida, como uma imóvel gueixa,
Um olhar de soslaio, como o de quem me deixa,
A tua silhueta que se tornava cada vez mais fátua.

O relógio maldito que trazias entre os dedos,
Somente marcava o tempo da definitiva separação,
Quisera, estátua, esmagar as tuas duas mãos,
Mas elas esmagaram o meu coração, mais cedo.

O teu olhar, estátua, o teu olhar para o nada,
Era uma seta com a ponta embebida em veneno,
Diante de cuja virulência meu coração era pequeno.

O teu desamor, estátua, a tua face envidraçada,
O teu descarinho, a tua completa falta de afeição,
Tudo isso, estátua, foi minha completa desilusão.

A Caminho do Cemitério

A Caminho do Cemitério

Trago um semblante de triste face, calma,
Porque minha face lívida é a vidraça,
Tênue, sutil, através da qual perpassa,
A penumbra sombria da minha alma.

Trago duas poças fundas de mágoas,
Que são meus olhos sempre marejados,
Olhos estes, meus, que de tão magoados,
Só fazem compungir-se e verter água.

E ao fundo da minha torácica caixa,
Um coração que do luto a triste faixa,
Negra sempre exibe, assim, funéreo.

E quando me vejo de um jeito absoluto,
Sei que sou um imenso cortejo de luto,
Caminhando lentamente para o cemitério.